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Conexões digitais e analógicas


Foto: © karlumbriaco, Adobe Stock

Chega um dia, via de regra entre os 20 e 30 anos, que a maioria das pessoas decide mudar de fase, começar a namorar sério e encontrar alguém bacana para compartilhar a vida.


Radar ligado o tempo todo até que você se depara com alguém que te interessa de verdade e, se não foi possível uma aproximação imediata, pergunta para quem estiver ao seu lado: “você conhece? ”. Segundos depois, a resposta: “Conheço sim! Péra aí... está no meu Insta .... olha que show a foto do perfil! ”.


Pronto, está tudo lá: relacionamentos, amigos, lugares frequentados, banda preferida, viagens, visão política, filmes marcantes, baladas, pets e, claro, muitas fotos e stories. Tudo muito prático.


Alguém aí lembra que nem sempre foi assim? Há algumas décadas, obter informações sobre alguém exigia uma investigação estratégica, criatividade e muita paciência: descobrir onde a pessoa trabalhava, seu trajeto rotineiro e até criar um encontro ‘casual’. Pouco prático, mas ninguém desistia.


A meu ver, embora bem distintas, essas abordagens se equivalem em eficiência para se atingir propósitos idênticos. Elas representam formas de buscas afetivas ajustadas aos modos de vida de suas épocas. Nem melhor, nem pior, portanto, apenas diferente.


Encontrar alguém para um relacionamento duradouro quase nunca é fácil, mas rende boas histórias. Como a de um amigo recém-divorciado e recém-chegado ao mundo virtual, que ficou encantado com o dinamismo e a popularidade de uma crush* nas redes sociais e que em poucas semanas descobriu que era impossível conviver com ela no mundo real. Em outra tentativa, encontrou alguém que tinha postado várias ‘viagens dos sonhos‘, mas que com duas ou três perguntas percebeu que essas experiências geraram muitas fotos, mas não aumentaram em nada o seu repertório cultural.


Caprichar na biografia não é privilégio de nativos digitais: faz parte da natureza humana mostrar sua melhor versão quando encontra alguém com potencial para uma parceria de vida. Mesmo nesse mundo de mudanças constantes, essa característica parece destinada a nos acompanhar para sempre (Oba!).


O escritor e humorista Luis Fernando Veríssimo descreve um primeiro encontro hilário na crônica O Lixo, de 1987, época em que era impossível conseguir informações sobre o cotidiano de pessoas comuns nos meios de comunicação existentes.


A história fala de um casal que morava há anos no mesmo andar de um prédio, mas que nunca tinha se visto. A conversa começa tímida e rapidamente a mulher revela observar frequentemente o lixo do vizinho, que, embora surpreso, confessa também fazer o mesmo com o dela. Divertida e criativa, a crônica me fez pensar sobre o quanto os itens que descartamos podem revelar sobre nossas vidas. Pouco lixo, família pequena. Muitas latas, não sabe ou não gosta de cozinhar.


A investigação de ambos foi bem mais profunda: o homem deduziu corretamente que a mãe dela era professora devido à letra bonita nos envelopes das cartas para a filha e conseguiu entender que o aumento repentino de lenços úmidos estava relacionado às lágrimas pelo término de um relacionamento. As descobertas da mulher também foram relevantes: as palavras cruzadas preenchidas significavam que ele pouco saia de casa por não ter namorada e que começou a fumar de tristeza pela morte do pai. A história termina um convite para um jantar e, pelo menos para mim, deixa no ar a possibilidade de vários outros encontros.


Conclusão: o tempo passa, tudo muda, mas a necessidade de se conectar do ser humano se mantém provocando encontros e desencontros, tanto no mundo digital como no analógico.

* Crush: alguém que desperta uma paixonite.


Versão em vídeo da crônica O Lixo


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